Suceder um álbum da magnitude de The Joshua Tree certamente não seria nenhuma tarefa fácil, aliás talvez a tarefa mais difícil seria na realidade ser o U2 após tal trabalho. Trazendo nos ombros a responsabilidade de serem a banda que aparentemente tinha “salvado o rock” nos anos 80, aquela única capaz de colocar a Irlanda no mapa mundial da música, com um disco aclamado que continha pelo menos três das músicas que muitas bandas dariam um dedinho da mão boa do guitarrista para ter no seu repertório: Where The Streets Have No Name, With Or Without You e I Still Haven’t Found What I’m Looking For.
A estrada parecia apesar de tortuosa, livre para eles certo? Eis que surge uma pedra no caminho: Rattle and Hum.
Apesar de muito longe de ser um fracasso músical, já que o álbum impulsionado por ótimas músicas como All I Want is You, Desire, Angel of Harlem e When Loves Come to Town que conta com a participação do fenomenal B.B.King, um vinil duplo, algo caro e raro na época, acabou por atingir os primeiros lugares de venda tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, acumulando vendas que chegam a superar 14 milhões de cópias. No conteúdo além das músicas citadas acima, há cover de Beatles, Bob Dylan e versões ao vivo de canções do seu antecessor.
Mas como a Matemática fria e exata as vezes não prova nada, talvez poucas bandas tenham sido tão massacradas quanto os irlandeses ao lançarem esse trabalho, não que o trabalho musical tenha sido descreditado, mas o grande problema foi o filme de mesmo nome para o qual foi trilha. Mostrando a parte da turnê americana de The Joshua Tree, gravado na estrada entre 1987 e 1988, o documentário dirigido por Phil Joanou mostrou para muitos uma faceta da banda que não foi bem digerida. Aqueles que estavam na tela diante de todos não eram os 4 caras que começaram tocando na escola em Dublin, ou os 4 punks que tocavam em pequenos pubs e mostraram um trabalho cheio de imagens e pregando a paz pelo mundo a fora. Víamos ali 4 rockstars, entediados megalomaníacos e sem vontade alguma de estar diante das câmeras. A imprensa acusava os então garotos prodígios, jovens antes dos 30 anos de terem se entregado a soberba e de certo modo “vendido as suas almas”, Bono numa postura que podemos dizer que até certo ponto era embrionária ao seu futuro The Fly se mostrava o ídolo acima do bem e do mal. A banda parecia cansada desmotivada. Muitos não entenderam as reverências aos nomes como Billie Holiday, Elvis Presley, acharam que talvez eles estivessem alçando voos altos demais para um grupo tão novo, ou que talvez estivessem vendendo a sua alma ao mercado americano. Ou seja, o que acabou por se iniciar como um pequeno projeto de uma espécie de road-movie para eternizar aquele momento tão especial para a banda, acabou por se tornar um evento megalomaníaco hollywoodiano. Com os direitos comprados pela Paramount Pictures, e seguindo o histórico que datava desde os filmes de Elvis, Rattle and Hum estreou em mais de 100 salas nos Estados Unidos. Seria realmente o passo final no plano de dominação do U2.
Em U2 by U2, os membros da banda lembram sobre essa mudança de direção acerca do filme em questão:
“A ideia original era que nós poderíamos financiar nosso próprio road movie e incluir algumas imagens ao vivo com o dinheiro que havíamos feito com a turnê de ‘The Joshua Tree’. Estava tudo indo bem, então começaram a ser adicionadas algumas outras coisas na nossa agenda porque poderiam ficar bem no filme. E ele se tornou um monstro. Eu culpo a loucura da turnê de ‘The Joshua Tree’, nós perdemos o contato com a realidade." - Larry Mullen.
Voltando a falar do aspecto musical, podemos considerar Rattle and Hum, um álbum de Bono. Se há anos os irlandeses haviam imigrado para América buscando um novo futuro, um novo espaço, o U2 fazia o mesmo com essa sua jornada, Bono sendo o dos quatro os mais influenciado e admirador da cultura estadunidense talvez tenha sido o estandarte dessa viagem musical da banda. John Lennon sempre foi uma das figuras heroicas na juventude do vocalista, bem como e logicamente os Beatles, Bono então abre o disco com uma cover gravada ao vivo para a faixa do White Album; Helter Skelter. Em um ritmo bem mais agressivo que a original, ele diz que Charles Manson havia roubado aquela música e eles agora estão pegando de volta, em uma referência ao fundador da Família Manson, grupo responsável por diversos crimes na década de 60. Em God Part II, Lennon é retomado, já que Bono cria uma extensão para God gravado em no Plastic Ono Band, álbum onde Lennon questiona a sua identidade como Beatle e como ídolo. “Não acredito nos anos 60 / A idade de ouro do pop / Você glorifica o passado / Enquanto o futuro seca”. Mesmo dizendo que não glorificava o passado, Bono chama mais duas “santidades” dessa década para estar no disco. Bob Dylan é co-autor e faz o backing vocal em Love Rescues Me, e toca órgão em Hawkmoon 269, além de ter um cover para All Along the Watchtower, gravado ao vivo durante o evento que ficou conhecido como Save the Yuppies realizado em São Francisco, a apresentação teve direito a emblemática pichação feita por Bono ROCK IN ROLL STOPS THE TRAFFIC, eternizada no filme da banda e que fez a Vaillacourt Fountain virar um ponto de interesses para os fãs da banda. Fechando a evocação dos monstros sagrados dos anos 60, temos Jimmy Hendrix servindo como introdução, com sua apresentação em Woodstock servindo de introdução para Bullet the Blue Sky. Aliás a título de curiosidade, desta foi retirado o título do álbum e filme.
“In the locust wind
Comes a rattle and hum
Jacob wrestled the angel
And the angel was overcome
You plant a demon seed
You raise a flower of fire
See them burning crosses
See the flames, higher and higher”
Seguindo pelo fascínio e pelo enlace pela cultura dos Estados Unidos temos faixas como Desire, que apesar de ter sido produzida nos estúdios STS em Dublin, aproxima a banda do tradicional som do sul dos Estados Unidos, Angel of Harlem uma ode a Billie Holiday, foi gravada no lendário Sun Studios, em Memphis, o local do qual Elvis Presley começou a estender os seus domínios, e contou com a produção de Cowboy Jack Clement. B.B. King apesar de achar que Bono “era jovem demais para escrever esse tipo de música” abençoou a banda gravando um dueto em When Love Comes to Town.
A linda e dramática Heartland, órfã de Joshua Tree, apesar de te sido gravada na casa de Adam, bem distante do continente americano, é uma pintura sobre a paisagem do delta do rio Mississipi, visto de cima, do jato particular usado pela banda durante as suas turnês. Van Diemen’s Land trouxe Edge assumindo os vocais, um uma balada que remete a música tradicional americana do século XIX, inspirada em Boyle O’Reilly, líder de um levante na Irlanda em 1848, que foi preso e deportado para a Austrália; um irlandês que levou sua cultura para outro lado do mundo, sendo a fonte de inspiração para irlandeses que levaram a música para a América.
I Still Haven’t Found What I’m looking for ganhou um lindo coral gospel em sua versão, Pride (In The Name of Love) feita para Martin Luther King marca presença. O álbum se encerra com a linda All I Want is You, inspirada por Ali, feita por Bono, ela faz todo o sentido ao mostrar a relação que a banda toda tinha naquele momento: a procura de alguém, um lar, um porto, algo a voltar quando se encerrasse todo o turbilhão de sentimentos e realidade na qual se encontravam naquele ponto de suas vidas.
Se há algo de errado com Rattle and Hum? No final o nosso veredicto é: ABSOLUTAMENTE NADA. Mal compreendido na época, mas adorado por muitos é a semente de fusão de sons e influências que guiaria o U2 pela próxima década. Vale ser ouvido, conhecido e apreciado.
Acompanhando o nosso Especial The Joshua Tree? Não!? Então confira aqui os episódios anteriores e continue ligado(a), porque até o início da tour tem mais!