Especial Bono 60: O homem, o demônio e a mosca
Especial Bono 60: O homem, o demônio e a mosca
08 de maio de 2020
Especial Bono 60: O homem, o demônio e a mosca
Paul, Bono, The Fly, The Fool, Mr. Macphisto, Mirroball e Shadown Man. Todas as faces de Mr. Hewson.
Vicky
Editora do U2 Brasil

Comecei os demais textos com foco na história, o último com uma salada e nesse a introdução vai para a literatura.

O escritor irlandês Oscar Wilde.

Oscar Wilde nasceu em 1854 na capital irlandesa e morreu 46 anos depois em Paris. Escritor, poeta e dramaturgo, tornou-se um dos mais populares na década de 1890. Criado em uma família protestante, depois convertida ao catolicismo, seu talento lhe garantiu uma bolsa de estudos na prestigiosa Universidade de Oxford, onde saiu de lá premiado e fundador do seu próprio estético o dandismo que defendia a partir de fundamentos históricos, o belo como antídoto para as mazelas daquela sociedade industrial que começava a se consolidar, sendo ele próprio o primeiro dândi. Publicou diversas obras, mas apenas um romance: O Retrato de Dorian Gray (nota: escutem The Ocean, faixa de Boy) que tem como foco em boa parte a vaidade e todas as nuances que ela causa na vida humana.

Wilde aparece aqui por causa de uma citação: “Man is least himself when he talks in his own person. Give him a mask and he will tell you the truth”.

“O homem é menos ele mesmo quando fala em sua própria pessoa. Dê a ele uma máscara, e ele lhe dirá a verdade.”

"Paul is dead! I'm fucking Bono!” Paul está morto! Eu sou o maldito Bono. O jovem Paul aprendeu desde cedo a importância de usar uma máscara para subir ao palco, e uma máscara não para se esconder, mas na realidade para assumir quem era, para subir ao palco e não mostrar a sua fraqueza, não uma máscara para esconder a sua identidade secreta, mas para ser o verdadeiro super-herói. Bono matou Paul muito cedo, muito antes mesmo de subir  no palco, mas quando se juntou aos seus amigos do Lypton Village e entendeu que o Paul de seus poucos anos precisava ficar em casa enquanto se sentia um garoto perdido sem a sua mãe e Bono precisava ir para a rua com os seus amigos e viver em um mundo particular rindo e encarando com cinismo a realidade daquela cidade que pareci as vezes tão pequena, tão distópica e tão descolada da sua realidade.

Alter ego – do latim "alter" (outro) e "ego" (eu) é uma locução substantiva latina, cujo significado literal é 'outro eu'. Cícero cunhou o termo como parte de seu discurso filosófico, no século I. Ele descrevia o alter ego como um amigo ou alguém próximo, em quem se deposita total confiança, um substituto perfeito.  Não sabemos se o jovem Paul David Hewson sabia que seu primeiro alter ego se tornaria maior do que ele mesmo, o velho a criatura vencendo o criador, em algumas entrevistas depois de já famoso ele mesmo disse que todo mundo o chama de Bono, até mesmo a sua esposa Ali. Quando vemos o baixinho de 1,68 em cima de um palco, tão forte, tão seguro, capaz de levar uma multidão, ele se torna maior do que qualquer outra pessoa  naquele momento ele tem a altura que quiser e o coração daquelas milhares de pessoas na palma de suas mãos.

Sim, esse texto é sobre quantas pessoas cabem dentro de uma só, e se você caro fã do U2 sempre pensou que os alter egos de Bono se referiam a The Fly e Mr. Macphisto, esqueceu desse pequeno detalhe: o próprio Bono já é um deles.

Mais um detalhe, lembram do post anterior? O favorito de Paul sempre foi David Bowie, então temos aí mais uma referência que se encaixa por aqui.

No início da carreira da banda, enquanto Bono escrevia músicas ainda sem ter certeza para que caminho aquele “experimento adolescente” iria levar, criou os seus primeiros “personagens” não tão magníficos quanto os demais, mas ele começava a se portar como outra pessoa, mesmo como apenas o narrados das suas letras. The Fool escrita em 1978 e gravada na primeira sessão  de demos da banda, foi influenciada pelas aulas de Artes e Teatros que o jovem Paul participava na Mount Temple, sendo assim ele se torna um inocente olhando para o mundo, e quando subia ao palco para cantaá-la – inclusive ela foi executada na apresentação da banda na RTÉ. Alguns livros – infelizmente temos que nos basear na leitura né, porque lá em 1978 nem viva eu estava, apesar de já ser tiazinha - colocam outro personagem embrionário de Bono, o Clow, mas desse aí, infelizmente não achei informações suficientes para colocar aqui para vocês.

No final dos anos 80 era de se esperar que Bono e o U2 estivessem simplesmente se sentindo no topo do mundo, afinal eles nem haviam chegado aos 30 anos, a banda com apenas 10 anos desde o lançamento do seu álbum de estreia já havia ganhado o Grammy, estampado a capa da Time , eram um nome mais do que conhecido e tinham inclusive um filme para chamar de seu como os ídolos que tanto cultivaram.

Em certa parte, foi justamente esse filme que fez com que a banda acordasse do seu “sonho de princesa”. A gravação de Rattle and Hum foi uma verdadeira exposição de feridas, com uma banda visivelmente entediada e não sabendo direito como lidar com o sucesso alcançado. Apesar de muito do material cortado do produto final, mesmo o material que chegou aos cinemas ainda deixa transparecer um pouco dessa sensação de deslocamento. A carga era pesada para todos, mas talvez Bono fosse o mais cobrado por ser “a cara da banda”, ele se via com dedos apontados questionando o seu envolvimento com as causas sociais – que já era grande desde o início dos anos 80 –, com o seu talento idem, pois todos queriam saber qual seria o próximo passo do U2, se eles continuariam a brilhar ou simplesmente seriam uma banda que atingiria o ápice e depois iria para o ostracismo.

Foi aí que chegamos ao ponto onde a banda disse na noite de ano novo de 1989 em um show no Point Depot em Dublin no qual Bono chegou ao microfone e declarou: que era "o fim de algo para o U2", e que eles tinham que "ir embora [...] e tudo seria apenas como um sonho novamente". "Temos que ir embora e... sonhar tudo de novo."

Bono começou a pensar e escrever as letras para o próximo álbum da banda enquanto estava em férias com a sua esposa Ali na Austrália. Enquanto estava em um luxuoso apartamento da capital australiana, ele se tornava sujeito ao tipo de aventura interpessoal que inspiraria parte do clima introspectivo e em até certos ponto sombrio do que se tornaria Achtung Baby.

Bono teve a ideia de juntar Brian Eno, Daniel Lanois e Flood para o novo trabalho, e pensando que talvez o deslocamento do seu espaço doméstico auxiliasse na criação de um novo som, visão e trabalho, foi decidido que iriam gravar o novo disco longe da Irlanda. Os Estados Unidos e o seu ambiente já haviam sido largamente explorados por outras bandas – e pelo próprio U2 – foi então que surgiu a ideia de partirem rumo a Berlim, onde Brian Eno já havia morado com David Bowie e Iggy Pop. A banda foi rumo a “nova Europa” que surgia pós fim da Guerra Fria, e dali sairia um dos mais geniais trabalhos de todos os tempos.

Mas esse texto não vai ficar contando a história da gravação do genial disco (quem sabe façamos isso no ano que vem quando ele completará 30 anos), então vamos em frente.

Bono sentia que estava na hora de se destacar da realidade, e nada melhor do que assumir uma nova identidade.

A banda havia escolhido dia o 29/02/1992 para a sua primeira turnê de estádio em 4 anos e foi nesse dia que o personagem pulou dos acordes do disco e ganhou vida.

The Fly havia sido o primeiro single lançado pela banda e agora era também quem Bono se tornava nos palcos da turnê Zoo TV. Bono tinha desde sempre sido uma pessoa acessível e aberta em cima dos palcos, que os óculos escuros imensos que são a marca registrada desse personagem, além de todo o seu esplendor em vinil preto, se tornaram verdadeiro escudos no qual Bono se escondia, se anulava e colocava todo o potencial da arrogância de um rockstar para fora. The Fly como disse anos depois no documentário From The Sky Down era uma espécie de kit de montagem com todos os elementos dos outros rockstars que passaram e mudaram a história do rock. The Fly é a imagem exagerada da atraente estrela do rock, que permitia que ele se livrasse da imagem do profeta que a mídia havia colado nele e o ajudava a revelar novos aspectos de sua personalidade.

 “Bem, à medida que envelhecemos, o nosso conceito sobre mocinhos e bandidos muda. Quando passamos dos anos 80 para 90, eu parei de jogar pedras em os símbolos óbvios do poder e os abusos sobre ele. Comecei a jogar pedras na minha própria hipocrisia. Isso é parte do que esse trabalho é sobre:  possuir o ego de alguém. Esses personagens nas músicas como ‘The Fly’ são possuir até a hipocrisia em seu coração, sua natureza dúbia. Existe uma música chamada ‘Acrobat’ que diz: não acredite no que você ouve, não acredite no que vê / se você apenas fecha os olhos / você pode sentir o inimigo... Não me lembro, mas o ponto é: você começa a ver o mundo de uma maneira diferente e que você faz parte do problema, não apenas parte da solução! (risos)” - ASSAYAS; Michka, 2007, Riverhead Books, p. 106, 2005.

O criticismo maior de Bono nesse momento está na metalinguagem, enquanto ele subia ao palco rindo do cinismo de todos os rockstar e colocando a arrogância, a megalomania e o exagero em cima do palco, ele mesmo, Paul Hewson, no fundo de todo o vinil, luzes e óculos era ele próprio um rockstar com seu ego, medos e gigantismo.

“Apesar de toda essa tecnologia e do design, a grande diferença pra mim era o Bono com os seus óculos. Ele sempre tinha sido muito aberto antes, e a ideia de as pessoas não verem seus olhos através dos óculos era muito grande. O Bono estava abraçando a sua estrela do rock. Entretanto, o meu trabalho não mudou.” – Larry sobre The Fly, no U2 by U2

Dica de leitura, a excelente entrevista de The Fly para a Rolling Stone americana, publicada em 1993.

A primeira companhia a The Fly durante a Zoo TV foi The Mirroball Man. Com a turnê começando nos Estados Unidos e com o álbum anterior sendo praticamente a uma ode ao país e ao american dream, ver Bono vestindo chapéu de cowboy com toda aquela estética de Las Vegas e um terno prateado brilhando dos pés a cabeça era algo como ver o avesso do que a banda havia sido nos últimos anos. Mirrorball era largamente inspirado pelos televangelistas da TV estadunidense que pregavam noites e tardes nas TVs vendo a fé como um bem de consumo desejado e acessível a todos, como uma caminhonete ou os novíssimos videocassetes e aparelhos de som que ornavam as salas. A música que o chamava para os palcos era Desire, nada mais contraditório do que a luxuria e o desejo, e uma pregação embasada na bíblia como esses pastores faziam na TV. “The preacher who steals the hearts of people during his traveling shows”. O pregador que rouba o coração das pessoas durante as suas viagens”.

E agora é a vez do nosso demoniozinho do coração.

Mirrorball Man foi considerado americano demais para a parte europeia da TV e foi aí que o saquinho de referências de Bono começou a funcionar mais uma vez. Na sua cabeça começava a surgir a visão de um rockstar decadente, uma coisa meio velha guarda do rock inglês, alguém que vivia no ostracismo do passado e nas migalhas da sua fama.

Montagem do musical The Black Rider.

A primeira inspiração para Bono foi o musical The Black Rider, encenado pela primeira vez em 1990 na cidade de Hamburgo na Alemanha, e criado como uma colaboração do diretor Robert Wilson, do genial músico Tom Waits e do escritor William S. Burroughs. O roteiro é baseado em uma lenda alemã chamada Der Freischütz. Na história Wilhelm, um arquivista, se apaixona pela filha de um caçador. Para se casar, Wilhelm deve provar seu valor como caçador e para obter a aprovação do seu sogro. Mas, como "um homem de caneta e tinta", seu tiro é péssimo e suas esperanças de casamento ficam cada vez mais distante. Até que ele recebe balas mágicas do diabo , Pegleg - que seus tiros sempre serão certeiros.

Mefistoteles e Fausto.

E falando de diabos, de alemães, entra em cena nas referências bonianas Goethe e seu Fausto. Escrito como um poema trágico dividido em duas partes e publicado em 1808. Nessa obra aparece Mefistófeles, um demônio aliado a Lucífer e Lucius na captura das almas através da sedução e encanto. Mefistófeles aparece ao Dr. Fausto, um velho cientista, cansado da vida e frustrado por não possuir os conhecimentos tão vastos como gostaria de ter. Em troca de alcançar o grau máximo da sabedoria, ser rejuvenescido e obter o amor de uma bela donzela, Fausto decide entregar a sua alma a Mefistófeles.

Mr. Macphisto saía dali. O demônio do capitalismo com o nome vindo de Mefistófeles e cruzado com o McDonald’s. A sua primeira aparição foi em 09 de maio de 1993. Macphisto usava terno dourado, chifres e sapatos vermelhos e uma maquiagem branca que escondia totalmente Bono por trás de seu enigmático sorriso. A música que o anunciava era Daddy's Gonna Pay For Your Crashed Car. O seu discurso era sarcástico, decadente e crítico. “Vocês me fizeram famoso e eu gostaria de agradecer.”

Mr. Macphisto ligava todas as noites para celebridades e autoridades, recebeu o escritor Salman Rushdie no palco de Wembley, mas o seu verdadeiro caso de amor era com o presidente George Bush com quem tentou falar por diversas vezes.

Macphisto parecia ter ficado no passado, apenas com uns relances de sua glamorosa existência em lampejos como quando apareceu no dia mundial de luta contra a AIDS no programa de Jimmy Kimmel em 2016. Mas, em maio de 2018, quando a eXPERIENCE + iNNOCENCE Tour começou, quem nos brindou com uma grata ressurreição? Um pouco mais discreto, afinal parece que até os demônios podem sentir o peso da idade, mas com a língua afiadíssima para nos lembrar que na era que trouxe Trump ao poder, a volta das ameaças a democracia e tantas outras cosias que pareciam estar há anos-luz de distância, ele estava mais vivo do que nunca. Quando você acredita que eu não existo, é quando eu faço meu melhor trabalho... Sim, Macphisto estava de volta, fazendo o seu “melhor trabalho”: ataques racistas nos Estados Unidos, extrema-direita na França, Putin, e até mesmo o nosso atém então recém-eleito Capitão Bossa Nova...

Ah, sim, e ainda rolou uma homenagem sútil a ele durante o clipe de Love Is Bigger Than Anything In Its Way.

Antes de ressuscitar Macphisto, durante a turnê comemorativa aos 30 anos de The Joshua Tree, Bono criou mais um personagem para si: The Shadow Man, esse era um escudo para que o próprio Bono, que dizia que não queria ir tão fundo enquanto cantava Exit, uma música que já o havia levado a lugares muito sombrios antes. Em entrevista a Rolling Stone comentou:

“Eu me machuquei bastante ao longo dos anos tocando essa música. Fiquei muito feliz por não tocá-la por muito tempo. Eu quebrei meu ombro. Entrei em lugares muito escuros no palco. Preferia não voltar a entrar nessa música, mas achei um jeito de pensar de onde ela veio e voltar para os livros que estava lendo na época. Percebi que a influência real era provavelmente Flannery O'Connor, então desenvolvi esse personagem chamado The Shadown Man (O Homem das Sombras) e estou conseguindo entrar no lugar do Homem das Sombras sem causar danos pessoais. É um personagem e tanto. Na verdade, estou usando algumas falas de Wise Blood (livro de Flannery). Eu também faço 'Eeny, meeny, miny, moe', com a qual crescemos na Europa, uma coisa totalmente racista. A parte de Wise Blood é: 'De onde você veio se foi, para onde você pensou que estava indo nunca está lá. Onde você está não é bom, a menos que você possa fugir disso'."

Exit precisava ser tocada, afinal, faz parte do clássico disco que seria tocado na íntegra. Porém, além de Bono ter realmente lembranças físicas dolorosas dela como o ombro quebrado durante a turnê original, a banda toda não guardava lembranças muito boas dela, já que seu julgamento pelo assassinato da atriz Rebecca Schaeffer, o americano Robert John Bardo usou a música, como parte de sua defesa, alegando que a canção tinha influenciado suas ações.

Shadow Man não tinha um figurino glamuroso, apenas um chapéu e a imagem de um vendedor de meia idade vagando pelo deserto, mas para todos que viram ao vivo a sua presença de palco o impacto jamais ficará apagado, com as mãos de Bono aparecendo no telão e um canto de desespero, medo e ao mesmo tempo nos chamando para a escuridão.

Para terminar o penúltimo texto desse especial meio torto sobre o aniversariante mais importante nascido do lado norte de Dublin em 10 de maio, cito o próprio:

“Rock 'n' roll é frequentemente o oposto. Em vez de colocar a sua pele na mesa, estamos encontrando uma segunda pele, uma máscara.” - ASSAYAS; Michka, 2007, Riverhead Books, p. 42, 2005.

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