Interpretação: Zooropa
Interpretação: Zooropa
13 de abril de 2020
Interpretação: Zooropa
Propagandas, promessas, consumismo, incertezas, esperança. Esta mistura de influências se faz presente em “Zooropa”, uma canção “manifesto” que parece ser atemporal para o momento em que vivemos.
Suderland
Colunista do U2 Brasil

.:: Introdução::.

A canção Zooropa dá título ao oitavo álbum de estúdio da banda, sucesso de crítica e vencedor de um Grammy. Seu nome foi inspirado a partir do nome da ZooTV Tour, e o nome da Europa, onde estava a acontecer a turnê. O álbum foi gravado no meio da mesma, então juntaram as duas palavras para dar nome ao álbum e à parte dos shows.

Zooropa é fortemente marcado pela estética musical europeia e com influências de rock alternativo e música eletrônica. Aliás, vale ressaltar aqui que David Bowie influenciou profundamente esse álbum, seja nos falsetes do Bono, seja na estética sonora europeia, ou nos cenários tecnológicos e futuristas. Em entrevista à Rolling Stone, Bono disse que "Ashes To Ashes", de David Bowie, inspirou a parte de piano de Lemon. Segundo ele:

"Lembro-me de ter descoberto como eles tinham conseguido aquele som de piano 'ping, ping, ping' em 'Ashes To Ashes'. No final, usamos isto em 'Lemon'".

Ao Irish Times, Bowie deu a seguinte declaração, em 1993:

“...sinto que eles (U2) são uma das poucas bandas de rock que tentam sugerir um mundo que continuará além da próxima grande muralha, que é o ano de 2000".

O conceito do álbum Zooropa era descrever uma distopia através do presente. Imaginar um personagem tão maravilhado com essa realidade que estava disposto a renegar tudo o que acreditava. Sobre a época criativa do álbum, Bono comentou:

“Foi muito intenso, uma época de muita criatividade. Nós estávamos perdidos no nosso trabalho, na arte e na vida, tudo parecia ter se misturado em apenas uma coisa. As calças de plástico estavam ficando cada vez mais difíceis de serem tiradas após os shows”.

.:: Citações ::.

Sobre a influência das letras, Bono disse: "Muito do que está neste álbum vem da leitura do trabalho de William Gibson", um autor de cyberpunk, que escreve um "tipo de ficção científica fodida". Assim, Bono transportou as letras do ambiente de Berlim, onde o Achtung Baby foi produzido, para uma realidade distópica chamada Zooropa. Então, Bono soltou a imaginação e escreveu uma distopia, era como se ele vivesse na Zooropa, uma Europa unificada, difusa e controlada pela mídia e pelo escapismo indulgente. Bono disse:

“'Zooropa' parecia uma ótima imagem de um local europeu que era surreal... A faixa de abertura era o equivalente em áudio do visual de Blade Runner. Se você fechar os seus olhos, você pode ver o neon, o LED gigantesco advertindo sobre todas as maneiras de efemeridade.”

Sobre o contexto de quando Bono escreveu essa letra, ele disse:

“Eu queria me livrar do peso que eu estava carregando. Eu queria voar. Tinha muita melancolia a nossa volta. ‘Eu não tenho religião, eu não sei o que é isso’. Há uma linha no Novo Testamento [João 3:8] que diz que o Espírito Santo se move e ninguém sabe de onde ele vem ou para onde ele está indo. É como o vento. Eu sempre senti isso sobre a minha fé. A religião geralmente é inimiga de Deus porque ela nega a espontaneidade e a quase anárquica natureza do espírito”.

.:: Interpretação::.

Zooropa começa com uma montagem barulhenta e indecifrável de vozes a partir de sinais de rádios amparadas por sons de sintetizadores. Em seguida temos vários slogans de propagandas e as suas promessas. Sobre essa letra Bono disse: “É o nosso novo manifesto”. É um tipo de manifesto contra o consumismo, o marketing irreal, a manipulação dos sonhos, a instigação das fantasias como isca. É como se vivêssemos para consumir e vivêssemos através das promessas dos produtos que nos vendem. Isso porque essa canção nasceu pouco tempo após a queda do Muro de Berlim, o “capitalismo” havia vencido o “comunismo”, a globalização se intensificava e havia um grande e novo mercado a ser explorado no leste europeu. Onde antes o que era consumido era ditado pelo Estado, agora cada um poderia escolher o que quisesse na prateleira, desde que pudesse pagar, claro. Dessa forma, a música começa com a pergunta “O que você quer?”, como se fosse um vendedor ávido por saciar nossos anseios, sem se preocupar se isso nos fará mal. E essa pergunta ecoa durante toda a música insistentemente, pois é assim que as propagandas, através da repetição e de ganchos psicológicos, surtem efeito no nosso cérebro. Em seguida ocorre um desfile de slogans de marcas famosas, que nesse contexto distópico não deixa de ser uma sutil ironia ao marketing agressivo e cheio de certezas num mundo inundado por incertezas derivadas das mudanças vigentes.

What do you want? What do you want? [O que você quer? O que você quer? João 1:38]

Watch your spell [Olhe como fala]

Zooropa… vorsprung durch technik [“Progresso através da tecnologia”, slogan da Audi]

Zooropa… be all that you can be [“Seja tudo que você possa ser”, slogan do Exército Americano]

Be a winner [“Seja um vencedor”, slogan das loterias do Reino Unido]

Eat to get slimmer [“Coma para emagrecer”, slogan da Slimfast]

Zooropa... a bluer kind of white [O branco mais azulado, Persil/Daz]

Zooropa... it could be yours tonight [Pode ser sua hoje a noite]

We're mild and green And squeaky clean [Somos suaves e fresquinhos, Fairy]

Zooropa... better by design [Melhor pelo design, Toshiba]

Zooropa... fly the friendly skies [Voe pelos céus amigáveis, United Airlines]

Through appliance of science [Através da aplicação da ciência]

We've got that ring of confidence [Nós temos aquele escudo de confiança, Colgate]

Esses slogans são dotados de um marketing inteligente e preciso, alveja em cheio os sonhos, fantasias e desejos mais intrínsecos da alma humana. Afinal, quem não quer usufruir do conforto e vantagens do progresso tecnológico? Alcançar todo o seu potencial pessoal e, assim, ser um vencedor? E quem resistiria à irresistível promessa de poder comer à vontade e ainda assim emagrecer? Ter boa auto-estima? Viajar pelo mundo? Assim, para muitos, o consumismo tem sido a maneira usada para fugir dos problemas e crises de ansiedade. Foi nesse contexto e com um olhar acurado sobre essa realidade que estava aflorando na Europa que Bono escreveu esse “manifesto”. É uma denúncia contra o consumismo desenfreado que veio a reboque da globalização, onde as pessoas passaram a ser avaliadas pelo que elas têm, não pelo que eles são.

And I have no compass [E eu não tenho nenhuma bússola]

And I have no map [E eu não tenho nenhum mapa]

And I have no reasons [E eu não tenho razões]

No reasons to get back [Nenhuma razão para voltar]

Então surgem esses versos expressando incertezas. Acredito que eles são frutos do contexto histórico no qual Bono estava inserido. Um novo mundo, agora globalizado e conectado via internet, estava se abrindo diante dele. O século XXI se aproximava. As informações começavam a se avolumar rapidamente por causa do avanço tecnológico. As pessoas eram bombardeadas por informações em dezenas de canais de TV e pela incipiente internet, que dia após dia ganhava mais conteúdo. Antigas tradições, geografias políticas e sistemas econômicos desmoronaram. Um simbolismo forte disso foi a queda do Muro de Berlim. Acredito que é nesse cenário que Bono escreveu que não sabia aonde todas essas mudanças o levaria, mas não havia razões para voltar atrás, para reerguer muros que dividiram países e povos, ou para abandonar todo o avanço científico alcançado. À frente havia dúvidas de onde tudo isso iria dar, se seria um futuro bom ou ruim, mas para trás ficou um mundo que gerou muitas guerras e divisões.

And I have no religion [E eu não tenho religião]

And I don't know what's what [E eu não sei o que é o que]

And I don't know the limit [E eu não sei qual é o limite]

The limit of what we got [O limite do que nós temos]

Nesses versos, ao invés de olhar para as mudanças externas, Bono lança luz nas mudanças interiores. Aquele jovem que cantava With a Shout e Gloria, que participou de um grupo de estudo bíblico onde, segundo ele mesmo, o ajudou muito a superar a perda da mãe e achar um conforto nesse mundo, agora via a religião como inimiga. As razões são muitas, uma delas Bono deixou explícita através do personagem “The Mirrorball Man”, que surgiu no início da turnê ZooTV  e a inspiração foi o livro “Wiseblood”, de Flannery O'Connor. Mirrorball Man era um pastor evangélico mais interessado em dinheiro e fama do que em ensinar a mensagem genuína do Evangelho de Jesus. Nos telões da ZooTV, nos shows nos EUA, apareciam alguns desses pastores pedindo dinheiro, deturpando a mensagem de Cristo para enriquecerem. Isso incomodava muito Bono, a ponto dele dar a seguinte declaração ainda no ano de 1985:

“Você liga a TV (nos Estados Unidos) e tem esse cara que parece um neonazista com uma Bíblia na mão e o seu punho sai virtualmente da tela da TV e entra no lugar que você está sentado assistindo. Vem os créditos e vem a chamada por dinheiro. Você pode imaginar o que isso transmite? Eu tenho que me conter para não jogar fora a televisão do hotel.”

São esses religiosos que distorcem o Evangelho, as regras da religião vazias do amor do Deus - que é a lei de Cristo -, a hipocrisia de muitos religiosos que arrotam santidade, mas por dentro são iguais a qualquer ser humano; e outras coisas semelhantes a essas, que provocam no Bono esse incômodo com a religião. Por isso ele cita essa frase de Jesus que foi dita para um religioso, Nicodemos, que por estar preso aos odres velhos da religião não conseguia entender a mensagem libertadora de Cristo:

“Há uma linha no Novo Testamento [João 3:8] que diz que o Espírito Santo se move e ninguém sabe de onde ele vem ou para onde ele está indo. É como o vento. Eu sempre senti isso sobre a minha fé. A religião geralmente é inimiga de Deus porque ela nega a espontaneidade e a natureza do espírito.”

Na sequência dessa entrevista de 1985, Bono diz:

“Você pode imaginar como é acreditar em Cristo e estar tão desconfortável com o cristianismo? A igreja vazia, construção oca. É o edifício. A igreja estabelecida é o edifício do cristianismo. É como quando o Espírito de Deus deixa um lugar, as únicas coisas que restaram são os pilares e as regras e regulamentações que o mantém de pé. E nós estamos mais e mais claustrofóbicos em volta de religião organizada. Eu costumo pensar que eu posso estar em uma igreja protestante ou católica, ou qualquer outra, e apenas estar lá comigo mesmo e com Deus.”

Zooropa... don't worry baby. It'll be alright [...não se preocupe amor, vai dar tudo certo]

Zooropa... you got the right shoes [... você tem os sapatos certos]

Zooropa... to get you through the night [... para te levar através da noite]

Zooropa... it's could outsid, but brightly lit [... está frio lá fora, mas bem iluminado]

Zooropa... skip the subway [... pule o metrô]

Zooropa... let's go to the overground [... vamos para a superfície]

Get your head out of mud baby [Tire sua cabeça dessa lama, amor]

Put flowers in the mud baby [Ponha as flores na lama, amor]

Overground [Superfície]

No particular place names [Nenhum nome de lugar específico]

No particular song [Nenhuma canção específica]

I've been hiding [Eu estive me escondendo]

What am I hiding from? [De que estou me escondendo?]

Então, nessa estrofe, surge uma mensagem otimista. Uma terceira pessoa falando para quem estava diante desse painel de incertezas, Bono, a fim de lhe dar ânimo. Apesar de tudo a jornada teria êxito, pois ele estava preparado (sapatos certos) para a caminhada em direção a esse futuro desse novo mundo globalizado, tecnológico, porém frio nas relações humanas. Eis o paradoxo do novo mundo, a proximidade virtual estava gerando distanciamento nas relações reais. Já as políticas econômicas estavam estimulando o individualismo e a ganância. Contudo, apesar das incógnitas e problemas, o caminho estava iluminado pelo conhecimento e experiências adquiridas.

Uma curiosidade. Durante a Segunda Guerra Mundial, alguns países levavam seus cidadãos para os metrôs quando estava havendo um bombardeio. Milhares de londrinos usavam o metrô como abrigo para se proteger dos bombardeios de aviões alemães. Dito isto, Bono usou uma bela metáfora nesses versos, há um encorajamento para sair da paralisia provocada pelo medo: saia do subsolo, do seu esconderijo. Vá para a superfície, encare seus medos e suas guerra pessoal. Tire os pensamentos da sua cabeça do que o paralisa, mire nas soluções e infinitas possibilidades que estão à frente, na superfície. E a estrofe termina com uma pergunta: “De que estou me escondendo?” Dele mesmo? Do novo? Das mudanças? De um mundo indiferente, egoísta e frio? De que você se esconde, caro leitor?

Zooropa...don't worry baby. It's gonna be alright [... Não se preocupe, amor. Vai dar tudo certo]

Zooropa...uncertainty...can be a guiding light [... Incerteza pode ser sua luz guia]

Zooropa...I hear voices,ridiculous voices [... Eu ouço vozes, vozes ridículas]

Zooropa...in the slipstream [... No murmurinho]

Zooropa...let's go,let's go...overground [Vamos, vamos... Para a superfície]

Zooropa...take your head out of mud baby [Tire sua cabeça fora da lama, amor]

(She's gonna dream up the world she wants to live in [Ela vai sonhar o mundo em que ela quer viver]

She's gonna dream out loud) [Ela vai sonhar bem alto]

E mais uma vez, Bono escreve versos com uma mensagem de bom ânimo. Aliás, não foi por acaso que escolhi essa música, pois certamente essa pandemia do coronavírus, que parece saída dos filmes distópicos de Hollywood, está nos colocando diante de um novo mundo, à semelhança das mudanças no mundo do contexto da geração dessa canção. Subitamente um vírus nos mostrou que, apesar de todo o avanço científico e desenvolvimento econômico que já alcançamos, devemos ser humildes e solidários se quisermos sobreviver como espécie humana. Subitamente nos vimos presos em nossos lares dependentes da ajuda e colaboração de outros. A realidade está nos mostrando que a sociedade, através do Estado, tem um papel importantíssimo para nosso bem estar. Que nossos impostos são justamente para fortalecer essa estrutura que garante, em última instância, a nossa sobrevivência. E como a ciência já comprovou, o conjunto é mais forte que o indivíduo. A cooperação é uma vantagem em termos globais para a sobrevivência de toda e qualquer espécie, até os animais irracionais aprenderam isso instintivamente. Uma espécie que coopere terá maiores hipóteses de sobrevivência que outra onde o “individualismo” seja mais acentuado. Nessa área de conhecimento, a “Teoria dos Jogos” tem sido muito útil no estudo das espécies, onde “cooperação e competitividade entre indivíduos” são dois conceitos-chave para compreender onde estamos e para onde vamos.

Dito isto, a mensagem do Bono nessa canção, que diz para não nos preocuparmos que as coisas irão se resolver, está muito atual. Esperança é fundamental para não desfalecermos. E, como ele escreveu, essa incerteza pode ser usada como ferramenta de superação, um tijolo que devemos transformar num degrau, para isso é necessário tirarmos lições desse cenário. O isolamento social propicia uma boa oportunidade para tal tarefa. O problema é que nos momentos de dúvida, há sempre aquelas vozes interiores - “Eu ouço vozes, vozes ridículas” - que trabalham para nos sabotar, para que não saiamos da nossa zona de conforto e evitemos situações de risco. Mas, como Bono bem disse, tire da sua cabeça esses pensamentos ruins, essa “lama” que aprisiona. Siga em frente (mas fique na quarentena, claro, risos) e saia desse buraco que te consome, se erga, encare a vida. Após toda essa tempestade, teremos as armas que precisamos, sairemos mais fortes e conscientes do que realmente importa. De que vale o consumismo e todo aquele marketing que vende fantasias?! O que define quem somos é realmente o que temos? O que mais nos faz falta numa quarentena é uma roupa da moda ou a companhia das pessoas que nos fazem bem e um abraço dos nossos pais?

Termino essa interpretação parafraseando o último e belo verso dessa canção frase “Vá sonhar o mundo em que você quer viver. Vá sonhar bem alto”. Imagine-o, vá para a superfície, se junte a quem sonha igual, pois a natureza (criação divina) nos ensina que a união faz a força, e lute por esse sonho. Sonhe alto!

Suderland Guimarães
Twitter: @suderland

+ Confira aqui esta e outras interpretações de Suderland

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